segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A brisa do Nilo

Cairo, Agosto de 2007
Enquanto a madrugada começa e a Lua já vai alta, prata com toque dourado, as famílias estacionam os carros nas pontes largas que saltam o rio, estendem-se em círculos ao longo da berma e vão molhando o pão “aish” no molho de amendoim. Sentam-se no miradouro improvisado e assim ficam um bom par de horas, porque finalmente é de noite e querem sentir a primeira brisa do dia, o leve sopro refrescado por este Nilo que lhes deu tudo, até o pretexto para a reunião. Come-se, fuma-se, fuma-se muito mas também se fala, está-se, é-se, depois de mais um Sol-a-Sol infernal, caótico e quente neste Cairo de Agosto capaz de colar qualquer pedaço de tecido ao corpo – o contrário não seria normal. É a cidade gigantesca dos prédios inacabados, do trânsito insuportável, dos miúdos que queimam tabaco agachados junto aos montes de entulho, dos velhos de face vincada e das crianças que descem à margem por um braçado de verduras; é a cidade dos afluentes/esgotos a céu aberto, onde se depositam os cadáveres dos burros, ou dos clubes ricos onde orquestras gigantescas embalam, para uma dezena de endinheirados, a dança de jovens tão belas quanto misteriosas – serpenteiam braços e tronco enrolando-se sobre si próprias mas libertam os cabelos negros, lisos, irrepreensíveis, como se prometessem uma explosão que nunca se dá.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Grande sorte, esta


Baleal, Junho de 2007

O vento deixa de soprar do lado da ilha, ganha vergonha ao momento, recolhe-se para o valorizar. A baía torna-se lisa, ordenada, está apenas mais um simpático francês na água e lá fora, apesar de ser Junho, não há quase ninguém, dois ou três pescadores de cana na mão, um corredor no areal aberto pela maré vazia. Absoluto espectáculo, aqui as nuvens carregadas e negras, lá ao fundo um poente limpo e pintado com as cores que explodem do Sol; aqui a ameaça de trovoada, lá à frente o céu aberto e imaculado como se nunca tivesse sido voado; aqui em cima desenha-se um inacreditável arco-íris, no horizonte encerra-se um derradeiro brilho ao lado da Berlenga. Grande sorte, esta, a de existir num Mundo por vezes perfeito.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

O Chapéu

A face fazia-se de traços finos e sérios, magros, serenos, desenhados debaixo de um chapéu preto de feltro jamais ausente. Nunca subia muito a testa, estava sempre cuidadosamente arrumado e um nada inclinado à frente e à esquerda, cerimonioso, nunca excêntrico, elegante, derradeiro toque de dignidade numa pessoa que já era tudo isso. A dignidade tem-se todos os dias e, assim, havia sempre chapéu, o que acompanhava o fato escuro e o sapato preto, do domingo, e o outro da semana de trabalho, para a camisa e a bota escura. Era o da missa das 10:00 e o dos dias em que o cereal lhe escorregava entre os dedos, felicidade aos pombos esquecidos de voar, empoleirados pelos ombros e braços. Dignidade… dizem que foi sempre assim naqueles 90 anos, vistos por uns, contados para outros, e agora, depois de ter vivido de tudo na vida, Zé Pedro também já vive na morte e ninguém lhe consegue imaginar o chapéu inclinado fora da cabeça, enquanto pega no pião esculpido à navalha e o faz girar na palma da mão, como se lhe desse existência. Obrigado por me deixares aqui à roda.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Bond, grande bond


Toronto, Maio de 2007

Foi como se cada minuto perdido fosse um desperdício demasiado valioso. Foi por isso que aproveitaram todos, os minutos e até os segundos, porque mesmo antes da despedida já ambos sabiam que tudo iria saber a pouco, demasiado pouco, ou ao nada que os gelou no momento do adeus. Há relações assim, inexplicáveis, assentes num “bond” que se vive mas não compreende; ele existe, está lá, numa palavra inesperada que é a razão ou num silêncio surdo que diz muito; num sorriso genuíno que é toda a felicidade ou num olhar profundo que serena uma vida. Bond, grande bond.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

O "fintabolista"

Machava, Maputo, Maio de 2006

O velho parece a parede, triste, negro e parado. Não larga a posição, pernas eternamente cruzadas, pregado perante os deuses que lhe passam à frente. Deve achar que são mesmo deuses, porque não ousa sequer olhá-los nos olhos apesar de os ter ali mesmo, a dois ou três metros. Ao contrário de outros, não delira e todo ele é devoção e silêncio, a forma mais nobre de admiração. Os anos atravessaram-lhe o corpo e deve estar agora a realizar um sonho de mufana, quando era apenas um fintabolista e repetia no pó da terra o que o vizinho da Mafalala andava a fazer pelo Mundo. Mas todo ele é devoção, silêncio, a forma mais nobre de admiração.

Ninguém pode imaginar a pequenez da minha cidadezinha. Lá, porém, há gente que me dá os bons dias (in Mia Couto, Contos do Nascer da Terra)

terça-feira, 17 de abril de 2007

A cama 13

É sempre o mesmo quarto e é sempre a mesma cama, a cama 13, aquela onde te deitam junto à janela. Não ligas nada a isso do 13, sei, e às vezes até penso que tens sorte, porque estás à janela, e vês o Sol e as nuvens, e o dia e a noite... sei lá, penso, nada melhor do que ver a vida lá fora para nos mantermos agarrados a ela!
Agarro-te a mão, não me olhas, não me falas, agarro-te a mão branca e fina e aperto suavemente porque quero que me sintas, que estou contigo e te quero comigo, e tu deixas-me esses dedos estendidos nos meus, porque se calhar não podes ou não queres agarrar-te a nada, nem a mim nem à vida.
Dói, a dor pisa-me cá dentro... mas o que quero eu? Tudo isto é egoísmo, como posso reclamar a tua presença, fazer-te refém para minha felicidade, prender-te a esta existência apenas tua, quando nem sei o que sentes, o que te dói, onde estás ou para onde queres ir?

terça-feira, 3 de abril de 2007

Daqui da varanda


Barcelona, Julho de 2006

É um terceiro andar modesto mas nobre, na forma como se empoleira para a cidade e olha o mar. Esqueço os quartos e a sala, o meu espaço preferido é este, a varanda, onde me sinto oferecido de bandeja à manhã fria a iluminada que há pouco se levantou ali atrás do Mediterrânico. Parece que a posso tocar, a água, quero tomar aqui todos os pequenos-almoços da minha vida, forçar os meus olhos ao choque de luz que me desperta e faz querer viver cada segundo deste dia, que se calhar nunca mais se repete.
Há varandas com Sol em todo o lado mas aqui tenho esta sensação feliz… sinto mesmo que faço parte do Mundo; ou que o Mundo quer fazer parte de mim. Levo os olhos do horizonte até Montjuic, salto os dois picos da Sagrada Família e percebo o buraco da Praça da Catalunha. Daqui de cima até entendo como tudo se fecha lá em baixo na cidade velha.
Mas não chega. Desço as escadas e a colina, faço do Parque Güell mais um breve miradouro e lanço-me finalmente em Barcelona na esperança de descobrir tudo. Como se fosse possível. Fujo às ruas novas traçadas a regra e esquadro e é na confusão do velhinho Born que me sinto alegremente desorientado. Aqui nada se procura porque mais cedo ou mais tarde tudo se encontra. Até eu me encontrei.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Vista para o tecto

Todo o tempo do mundo, o infinito a olhar um tecto primeiro opaco mas, bem visto, um desfilar imenso de projectos, desejos, ambições. Só assim se pode combater o relógio calão cravado na parede, a converter os sonhos em alimento da própria existência, a fazê-los desfilar como se acelerassem a cura ou o resgate desta prisão.
A noite cai. A luz que sobra de Lisboa atravessa as grades da janela e desenha-as na parede do outro lado. A jaula está agora completa, mais fechada. Nesta hora escura e de solidão, só mesmo o que surge no tecto permite a chegada tranquila do sono, até adormecer e percorrer o caminho mais curto até à manhã.
Oxalá dormisse mais. Ao início do dia, num quarto de hospital, já não há nada para fazer. António conta as histórias de como carregou ferro e cimento, ergueu prédios e os filhos; Alfredo fala pouco e gasta as energias a telefonar a alguém; e Alcino não abre a boca, apenas desce a mão pesada e lenta entre a testa e a face, como se aquilo fosse uma forma de suspiro. Não pára de suspirar todo o dia.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Tempo

Não lhe sai da cabeça. Não consegue uma trégua do pensamento invasor, não esquece os minutos horas dias, a existência sempre em função desse maior dos opressores, o tempo, castrador afiado dos sonhos marcados para a vida.
Olha os planos, do passado, e tudo se lhe oferece em frustração, porque o que vê é apenas espaço onde já não toca, onde mais nada se realiza; e é isso que lhe dói, não lhe sai da cabeça, no momento em que rola pela estrada vazia, e as luzes furam a noite fechada, e os quilómetros passam como o… tempo, como algo que nunca mais poderá viajar.
Conduz atropelado pelo sentimento, o de não estar à altura para se guiar no mundo à sua frente; sente que falhou e vasculha desesperadamente memórias, busca concretizações, vitórias que combatam a desilusão gritada no interior. E insiste até encontrar um motivo de orgulho, ou uma amizade, ou mais… até voltar a sorrir ao tempo, sentir que o controla, que o pode parar... assim como estaciona no local de destino.

Chegou ali para celebrar 2007, ergue-lhe o copo de frente e coloca-o onde deve - fora da cabeça.