domingo, 26 de novembro de 2006

Pinga-amor

O pinga-amor deixa por onde passa a alegria da sua face, descongela os olhares presos no escuro e aconchega-os com uma felicidade permanente; solta um eco inspirador, cópia dele mesmo, é farol que fura tristezas e inspiração para os desencontrados do sorriso. O pinga-amor deixa-se pingar por todo o lado e só não se desfaz no próprio rasto porque todo ele é fonte de ternuras, de bondades; ajuda a sentenciar desesperos, empurra no salto às melancolias, entrega-se, sempre, nas mais puras paixões. O pinga-amor ama e ensina a amar, é dicionário de sentimentos, mapa aos destinos belos e nunca antes vividos; dá-se na sua imensidão e deve ser lido com a devoção mais profunda. Também ele merece ser pingado.

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Mergulho

Assim como o mar entra pelos olhos, também os olhos navegam memória acima para fazer desfilar a força daquelas águas, hoje ternas, em tempos armadilha disfarçada. E à medida que o mergulho é mais e mais fundo, torna-se clara a imagem da tarde em que nada disto era planeado, em que ele, predador e feroz, esperava o momento certo para a fatalidade, para o ataque.
A emboscada foi nada mais que breve. Subitamente a onda quase fechada esfumou-se em espuma, com a camada de branco lá por cima a borbulhar fervendo de cinismo, porque se era lençol calmo de novo, também escondia por baixo uma vida que queria libertar-se. No vazio a luta durou menos que tempo; e mesmo antes da primeira tentativa de grito já tudo estava condenado ao silêncio, a uma dormência consciente mas aos poucos leve, e mais leve, até ausente.
Do nada uma mão torna-se dona daquele corpo pesado e amolecido, saca-o, devolve-o ao ar que pode inspirar-lhe vida. E espera, suplica por uma reanimação, por um vómito de água que signifique uma batida no coração desistido. E ele bateu.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Cheiro de vida

Cheiro o meu cheiro neste teu corpo triste e cansado de vida, aqui, para mim sempre corpo, existência, e percebo-o agora a embarcar nesse abismo escuro e ausente

Cheiro o meu cheiro neste corpo apesar de tudo ainda belo, elegante e sereno, derrotado mas com o orgulho de quem nunca aceitou vergar-se, e atinjo mais do que nunca a evidência de que não sou acaso, eu isolado, eco sem passado

Cheiro o meu cheiro, sinto que a minha pele vem da tua, que o meu gesto é cópia do teu; vejo em ti o meu olhar, decifro finalmente todos os traços da tua face e, neste triste fim, uma tímida brisa me refresca

domingo, 12 de novembro de 2006

Partida



Também aqui o mar é ponto de partida
Porque no mar não se morre - a água faz apenas o seu papel, invade as nossas profundezas, sufoca todos os espaços para nos libertar para a vida imensa e azul -, o que sonhamos é ser oceano, estar onde as almas se deixam levar pelas correntes, nas mais consentidas derivas

E se formos embrulhados e expulsos logo de seguida, apenas uma conclusão: mais respeito na forma de o mergulhar