terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Uma noite de Natal

Pensava-se que o almoço tinha caído mal, mas era algo mais do que isso. Visão desfocada, raciocínio afectado e sem equilíbrio para andar, José seguiu numa ambulância para o Hospital de Peniche onde, após um “Raio-X” e observação do médico… logo teve alta. Foi preciso o velhote de 88 anos tentar andar e não conseguir para o “sapateiro” – designação que José usa carinhosamente para todos os que andam com a bata branca – se lembrar de mandar fazer outro exame, um TAC. Onde? Só em Lisboa.
E assim viu a tarde ir passando, deitado numa maca, à espera que o levassem para Santa Maria. A única ambulância disponível tinha saído, transferindo uma jovem acidentada para as Caldas da Rainha - o Hospital de Peniche, como muitos outros pelos País, é um entreposto de casos graves: ninguém lá para; todos se transferem. Havia então a espera. “Há outras ambulâncias mas os bombeiros não têm condutores”, justificaram.
Ao final da tarde, por volta das 19 horas, lá seguiu rumo à Capital. José começou a constatar que o jantar de Consoada, em família, poderia estar em perigo. Confirmou que ia falhar as couves e o bacalhau quando deu entrada numa sala de espera, onde se aguardava para outra sala de espera, a dos TAC’s. Quando às 22 horas lá entrou, viu tanta gente que percebeu que nem as prendas poderia abrir.
Tinha Jesus nascido há 5 minutos quando o José fez o exame. Faltava agora a consulta do especialista e, é claro, também para isso foi preciso esperar. Foi então que a sua maca, empurrada pelos corredores gelados de Santa Maria - longos, sombrios, húmidos, com a tinta a cair das paredes e saudáveis bolores negros nos tectos - foi estacionada numa outra sala: Duas filas ordenadas em função do fundo, bem encostadas, e cabiam lá uns dez azarados. Quinze, juntando quem estava nas cadeiras de rodas.
O tempo nunca correu depressa num hospital, muito menos na noite de Natal. Queixando-se de dores na perna, na mesma que não o deixava andar, José suspirava pelo “sapateiro” quando finalmente, às duas da manhã, foi chamado e guiado para uma nova área. A maca ficou num corredor, junto a uma porta de onde saiu uma “sapateira”, mais doente do que muita gente que por ali andava. Pobre mulher, entre o tossir e o funganhar, pediu para esperar por um colega. O especialista chegou. Olhos breves no exame, atira de pronto o diagnóstico: “AVC”. Sempre no corredor, destapa o José e testa a sensibilidade da perna e braço direito. O caso, delicado, não parece de gravidade extrema. E o doente recebe ordem de transferência para Peniche, onde ficará internado.
Tudo demorou uma eternidade, apenas a observação do médico foi um relâmpago. Voltemos portanto à normalidade e à sala de espera onde José está novamente arrumado, agora à espera de uma ambulância que o faça regressar a Peniche. Azar dos azares: só há uma e saiu há minutos para… as Caldas da Rainha. Passaram doze horas desde a trombose e o velhote está a fazer uma directa a oitenta quilómetros da enfermaria onde será internado. Não consegue pregar o olho e pergunta de quem são os gritos que vêm do lado… a situação começa a viver-se num conformismo quase sarcástico: todos sabem que não podem fazer nada; todos rogam pragas a toda a gente.
Um episódio cómico anima a noite. As televisões estão na Urgência e fazem a habitual reportagem da noite de Natal. Os responsáveis dizem que tudo está a correr dentro da normalidade, que não há muitos doentes e, por isso, a espera não é longa. Conceitos. Às 06:30 da madrugada a tal ambulância que foi às Caldas, já regressada, arranca de Lisboa para Peniche, levando o José e um outro doente. Em terra, a chorar, fica uma senhora de Abrantes, alguém que sentiu-se mal e decidiu ir ao entreposto lá da terra. Acabou em Santa Maria, à espera de uma ambulância, desde a meia-noite.
A viagem segue tranquila, pela A8, até ao inacreditável momento em que o condutor decide parar na área de serviço de Torres Vedras. Diz que não aguenta mais, que o serviço não o deixa dormir há três dias, e vai beber um café com o colega/enfermeiro ucraniano. Dentro da ambulância, uma Mercedes apenas com luzes médias que rola a 90 Km/h, está um frio insuportável. Uma janela que teima em abrir-se, com a vibração, também não ajuda. O carro de um familiar do José segue, agora, à frente da ambulância. Foi o bombeiro que pediu, para ser guiado e a viagem ser segura, não vá alguém adormecer. Com o Sol já bem-nascido, José chega por fim ao Hospital de Peniche, às 08:00 horas. É rapidamente observado e fica num corredor, à espera de subir para o primeiro piso, onde será internado. Os familiares recebem instruções para partir, com a indicação de telefonarem ao meio-dia, para saber novidades. O contacto é feito. E quase 24 horas depois do AVC, José ainda está no corredor, à espera de ser internado…

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

O que não se escreve




Biarritz, Julho de 2006

domingo, 26 de novembro de 2006

Pinga-amor

O pinga-amor deixa por onde passa a alegria da sua face, descongela os olhares presos no escuro e aconchega-os com uma felicidade permanente; solta um eco inspirador, cópia dele mesmo, é farol que fura tristezas e inspiração para os desencontrados do sorriso. O pinga-amor deixa-se pingar por todo o lado e só não se desfaz no próprio rasto porque todo ele é fonte de ternuras, de bondades; ajuda a sentenciar desesperos, empurra no salto às melancolias, entrega-se, sempre, nas mais puras paixões. O pinga-amor ama e ensina a amar, é dicionário de sentimentos, mapa aos destinos belos e nunca antes vividos; dá-se na sua imensidão e deve ser lido com a devoção mais profunda. Também ele merece ser pingado.

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Mergulho

Assim como o mar entra pelos olhos, também os olhos navegam memória acima para fazer desfilar a força daquelas águas, hoje ternas, em tempos armadilha disfarçada. E à medida que o mergulho é mais e mais fundo, torna-se clara a imagem da tarde em que nada disto era planeado, em que ele, predador e feroz, esperava o momento certo para a fatalidade, para o ataque.
A emboscada foi nada mais que breve. Subitamente a onda quase fechada esfumou-se em espuma, com a camada de branco lá por cima a borbulhar fervendo de cinismo, porque se era lençol calmo de novo, também escondia por baixo uma vida que queria libertar-se. No vazio a luta durou menos que tempo; e mesmo antes da primeira tentativa de grito já tudo estava condenado ao silêncio, a uma dormência consciente mas aos poucos leve, e mais leve, até ausente.
Do nada uma mão torna-se dona daquele corpo pesado e amolecido, saca-o, devolve-o ao ar que pode inspirar-lhe vida. E espera, suplica por uma reanimação, por um vómito de água que signifique uma batida no coração desistido. E ele bateu.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Cheiro de vida

Cheiro o meu cheiro neste teu corpo triste e cansado de vida, aqui, para mim sempre corpo, existência, e percebo-o agora a embarcar nesse abismo escuro e ausente

Cheiro o meu cheiro neste corpo apesar de tudo ainda belo, elegante e sereno, derrotado mas com o orgulho de quem nunca aceitou vergar-se, e atinjo mais do que nunca a evidência de que não sou acaso, eu isolado, eco sem passado

Cheiro o meu cheiro, sinto que a minha pele vem da tua, que o meu gesto é cópia do teu; vejo em ti o meu olhar, decifro finalmente todos os traços da tua face e, neste triste fim, uma tímida brisa me refresca

domingo, 12 de novembro de 2006

Partida



Também aqui o mar é ponto de partida
Porque no mar não se morre - a água faz apenas o seu papel, invade as nossas profundezas, sufoca todos os espaços para nos libertar para a vida imensa e azul -, o que sonhamos é ser oceano, estar onde as almas se deixam levar pelas correntes, nas mais consentidas derivas

E se formos embrulhados e expulsos logo de seguida, apenas uma conclusão: mais respeito na forma de o mergulhar