Pensava-se que o almoço tinha caído mal, mas era algo mais do que isso. Visão desfocada, raciocínio afectado e sem equilíbrio para andar, José seguiu numa ambulância para o Hospital de Peniche onde, após um “Raio-X” e observação do médico… logo teve alta. Foi preciso o velhote de 88 anos tentar andar e não conseguir para o “sapateiro” – designação que José usa carinhosamente para todos os que andam com a bata branca – se lembrar de mandar fazer outro exame, um TAC. Onde? Só em Lisboa.
E assim viu a tarde ir passando, deitado numa maca, à espera que o levassem para Santa Maria. A única ambulância disponível tinha saído, transferindo uma jovem acidentada para as Caldas da Rainha - o Hospital de Peniche, como muitos outros pelos País, é um entreposto de casos graves: ninguém lá para; todos se transferem. Havia então a espera. “Há outras ambulâncias mas os bombeiros não têm condutores”, justificaram.
Ao final da tarde, por volta das 19 horas, lá seguiu rumo à Capital. José começou a constatar que o jantar de Consoada, em família, poderia estar em perigo. Confirmou que ia falhar as couves e o bacalhau quando deu entrada numa sala de espera, onde se aguardava para outra sala de espera, a dos TAC’s. Quando às 22 horas lá entrou, viu tanta gente que percebeu que nem as prendas poderia abrir.
Tinha Jesus nascido há 5 minutos quando o José fez o exame. Faltava agora a consulta do especialista e, é claro, também para isso foi preciso esperar. Foi então que a sua maca, empurrada pelos corredores gelados de Santa Maria - longos, sombrios, húmidos, com a tinta a cair das paredes e saudáveis bolores negros nos tectos - foi estacionada numa outra sala: Duas filas ordenadas em função do fundo, bem encostadas, e cabiam lá uns dez azarados. Quinze, juntando quem estava nas cadeiras de rodas.
O tempo nunca correu depressa num hospital, muito menos na noite de Natal. Queixando-se de dores na perna, na mesma que não o deixava andar, José suspirava pelo “sapateiro” quando finalmente, às duas da manhã, foi chamado e guiado para uma nova área. A maca ficou num corredor, junto a uma porta de onde saiu uma “sapateira”, mais doente do que muita gente que por ali andava. Pobre mulher, entre o tossir e o funganhar, pediu para esperar por um colega. O especialista chegou. Olhos breves no exame, atira de pronto o diagnóstico: “AVC”. Sempre no corredor, destapa o José e testa a sensibilidade da perna e braço direito. O caso, delicado, não parece de gravidade extrema. E o doente recebe ordem de transferência para Peniche, onde ficará internado.
Tudo demorou uma eternidade, apenas a observação do médico foi um relâmpago. Voltemos portanto à normalidade e à sala de espera onde José está novamente arrumado, agora à espera de uma ambulância que o faça regressar a Peniche. Azar dos azares: só há uma e saiu há minutos para… as Caldas da Rainha. Passaram doze horas desde a trombose e o velhote está a fazer uma directa a oitenta quilómetros da enfermaria onde será internado. Não consegue pregar o olho e pergunta de quem são os gritos que vêm do lado… a situação começa a viver-se num conformismo quase sarcástico: todos sabem que não podem fazer nada; todos rogam pragas a toda a gente.
Um episódio cómico anima a noite. As televisões estão na Urgência e fazem a habitual reportagem da noite de Natal. Os responsáveis dizem que tudo está a correr dentro da normalidade, que não há muitos doentes e, por isso, a espera não é longa. Conceitos. Às 06:30 da madrugada a tal ambulância que foi às Caldas, já regressada, arranca de Lisboa para Peniche, levando o José e um outro doente. Em terra, a chorar, fica uma senhora de Abrantes, alguém que sentiu-se mal e decidiu ir ao entreposto lá da terra. Acabou em Santa Maria, à espera de uma ambulância, desde a meia-noite.
A viagem segue tranquila, pela A8, até ao inacreditável momento em que o condutor decide parar na área de serviço de Torres Vedras. Diz que não aguenta mais, que o serviço não o deixa dormir há três dias, e vai beber um café com o colega/enfermeiro ucraniano. Dentro da ambulância, uma Mercedes apenas com luzes médias que rola a 90 Km/h, está um frio insuportável. Uma janela que teima em abrir-se, com a vibração, também não ajuda. O carro de um familiar do José segue, agora, à frente da ambulância. Foi o bombeiro que pediu, para ser guiado e a viagem ser segura, não vá alguém adormecer. Com o Sol já bem-nascido, José chega por fim ao Hospital de Peniche, às 08:00 horas. É rapidamente observado e fica num corredor, à espera de subir para o primeiro piso, onde será internado. Os familiares recebem instruções para partir, com a indicação de telefonarem ao meio-dia, para saber novidades. O contacto é feito. E quase 24 horas depois do AVC, José ainda está no corredor, à espera de ser internado…
terça-feira, 26 de dezembro de 2006
quarta-feira, 20 de dezembro de 2006
domingo, 26 de novembro de 2006
Pinga-amor
O pinga-amor deixa por onde passa a alegria da sua face, descongela os olhares presos no escuro e aconchega-os com uma felicidade permanente; solta um eco inspirador, cópia dele mesmo, é farol que fura tristezas e inspiração para os desencontrados do sorriso. O pinga-amor deixa-se pingar por todo o lado e só não se desfaz no próprio rasto porque todo ele é fonte de ternuras, de bondades; ajuda a sentenciar desesperos, empurra no salto às melancolias, entrega-se, sempre, nas mais puras paixões. O pinga-amor ama e ensina a amar, é dicionário de sentimentos, mapa aos destinos belos e nunca antes vividos; dá-se na sua imensidão e deve ser lido com a devoção mais profunda. Também ele merece ser pingado.
segunda-feira, 20 de novembro de 2006
Mergulho
Assim como o mar entra pelos olhos, também os olhos navegam memória acima para fazer desfilar a força daquelas águas, hoje ternas, em tempos armadilha disfarçada. E à medida que o mergulho é mais e mais fundo, torna-se clara a imagem da tarde em que nada disto era planeado, em que ele, predador e feroz, esperava o momento certo para a fatalidade, para o ataque.
A emboscada foi nada mais que breve. Subitamente a onda quase fechada esfumou-se em espuma, com a camada de branco lá por cima a borbulhar fervendo de cinismo, porque se era lençol calmo de novo, também escondia por baixo uma vida que queria libertar-se. No vazio a luta durou menos que tempo; e mesmo antes da primeira tentativa de grito já tudo estava condenado ao silêncio, a uma dormência consciente mas aos poucos leve, e mais leve, até ausente.
Do nada uma mão torna-se dona daquele corpo pesado e amolecido, saca-o, devolve-o ao ar que pode inspirar-lhe vida. E espera, suplica por uma reanimação, por um vómito de água que signifique uma batida no coração desistido. E ele bateu.
A emboscada foi nada mais que breve. Subitamente a onda quase fechada esfumou-se em espuma, com a camada de branco lá por cima a borbulhar fervendo de cinismo, porque se era lençol calmo de novo, também escondia por baixo uma vida que queria libertar-se. No vazio a luta durou menos que tempo; e mesmo antes da primeira tentativa de grito já tudo estava condenado ao silêncio, a uma dormência consciente mas aos poucos leve, e mais leve, até ausente.
Do nada uma mão torna-se dona daquele corpo pesado e amolecido, saca-o, devolve-o ao ar que pode inspirar-lhe vida. E espera, suplica por uma reanimação, por um vómito de água que signifique uma batida no coração desistido. E ele bateu.
segunda-feira, 13 de novembro de 2006
Cheiro de vida
Cheiro o meu cheiro neste teu corpo triste e cansado de vida, aqui, para mim sempre corpo, existência, e percebo-o agora a embarcar nesse abismo escuro e ausente
Cheiro o meu cheiro neste corpo apesar de tudo ainda belo, elegante e sereno, derrotado mas com o orgulho de quem nunca aceitou vergar-se, e atinjo mais do que nunca a evidência de que não sou acaso, eu isolado, eco sem passado
Cheiro o meu cheiro, sinto que a minha pele vem da tua, que o meu gesto é cópia do teu; vejo em ti o meu olhar, decifro finalmente todos os traços da tua face e, neste triste fim, uma tímida brisa me refresca
Cheiro o meu cheiro neste corpo apesar de tudo ainda belo, elegante e sereno, derrotado mas com o orgulho de quem nunca aceitou vergar-se, e atinjo mais do que nunca a evidência de que não sou acaso, eu isolado, eco sem passado
Cheiro o meu cheiro, sinto que a minha pele vem da tua, que o meu gesto é cópia do teu; vejo em ti o meu olhar, decifro finalmente todos os traços da tua face e, neste triste fim, uma tímida brisa me refresca
domingo, 12 de novembro de 2006
Partida
Porque no mar não se morre - a água faz apenas o seu papel, invade as nossas profundezas, sufoca todos os espaços para nos libertar para a vida imensa e azul -, o que sonhamos é ser oceano, estar onde as almas se deixam levar pelas correntes, nas mais consentidas derivas
E se formos embrulhados e expulsos logo de seguida, apenas uma conclusão: mais respeito na forma de o mergulhar
E se formos embrulhados e expulsos logo de seguida, apenas uma conclusão: mais respeito na forma de o mergulhar
Subscrever:
Mensagens (Atom)